terça-feira, 23 de julho de 2013

Memórias

A antiga trajetória da minha história pré-determinada ao ventre.
O cumprimento matinal das formigas que me adotaram na infância.
A piedade que me falta ao mundo e a coragem súbita que me toma emprestado o corpo.
Os watts/cm² que pulsam no Big Bang de todos os olhos, e a intenção de toda uma vida quando se colapsa dois universos.
Aquela cor primária e inédita que está se desbotando para dar lugar a outra no meu planeta natal.
A lua quebrada, fina e líquida de Saturno e seu percurso de rio de pedra, ou ainda,
a nossa lua, que uma vez vi derramada sob o milharal a se transformar num mar de leite fosforescente silencioso.

As primeiras histórias, o prolongado e longínquo instante em que tudo é.
O momento em que as ondas agarraram pela primeira vez meu calcanhar e a minuscula vala de areia que meus pés abriram na memória.
Um movimento da saia de um vestido, um lábio que deslizou devagar pelos dentes cerrados até se libertar na velocidade do mel.
Minha intimidade perdida com o sol que ainda hoje vem me buscar pelas grades enferrujadas.
A rápida metamorfose das coisas em combustão, a corrida plasmática do azul ao laranja na chama estática.
A antiga capacidade de derreter as pedras e de as solidificar em retas alvenarias.
A graça satânica instalada no amor a colocar movimento nos homens e nas máquinas.
A furta-cor da carapaça das varejeiras e nas asas das moscas-domésticas,
A toalha de mesa xadrez com migalhas de pão e a fumaça que sobe cheia de rodeios e que o lustre captura.

O som que vem da sala preenchendo a atmosfera com a leveza de mulheres conversando aos Domingos.
A comunhão perdida com as coisas simples e amarelas a se descascar pelas beiradas, pelas quinas discretas como antigas fotografias. 

O rejunte grosso e enegrecido, o vidro trincado, a cerâmica lascada, as vidas sobrepostas no processo de tudo isso, e a lenta degradação daquilo que retorna da viagem de ser. 
E a profana divindade dessas pequenas coisas todas, que tem de pecado e culpa apenas o necessário.
O desejo como a efemeridade do plástico e o esquecimento como fruta decomposta.
A varredura do horizonte móvel a colorir e desbotar os ângulos e as tangentes.

A criatividade a colocar universos em grãos de areia e microcosmos em galáxias.
O perfeito ajuste do encaixe das circunferências do eclipse solar.

A imensa pequeneza que tudo isso traz aos gestos eternamente insuficientes.
A euforia gasta dando espaço ao silêncio resignado.

E os dois tigres que subitamente se erguem simétricos,
e me espreitam por detrás do canavial de seus olhos,
antecipando um segundo sua própria existência...