sábado, 26 de dezembro de 2015

Fiz vários planos de coisas pra fazer com a Helena; tomar a primeira chuva, levá-la a rodas de samba, até levá-la ao mercado pra desenhar peixes, encontrar o meio ideal de inserir sua pequena e delicada existência à engrenagem movediça e fervilhante das cidades, queria apresentar o mundo à ela, apresentar músicas do mundo todo, várias culturas, vários costumes, várias historias. "O mundo não é feito de átomos, é feito de histórias." E esses dias dirigindo pensei na anatomia da mulher e do homem, o homem nasceu com um falo, como uma seta, e saiu a desbravar o mundo, guiado pela sua seta, a mulher por sua vez nasceu com com uma reentrância, tudo aquilo que o homem sai buscando, todo o mistério do mundo e da vida se afunila para dentro da mulher, todo o segredo que o homem busca incansavelmente, a mulher vem absorvendo com sua anatomia por milhares de anos, naturalmente. Por isso tem um sentido à mais do que nós. Por isso faz mais sentido no mundo mulher, porque mulher vem sentindo melhor o mundo. Então qual era o propósito de eu apresentar o mundo pra minha filha? Um mundo que no fundo ela já conhece melhor do que eu? Ela me admiraria por consolo, pela intenção? Claro que eu estou falando sobre estereótipos psicologicos, hj em dia a mulher é muito mais desbravadora do que nós. Talvez sempre tenham sido. De qualquer forma, estava com a Helena no colo, e mostrava pra ela pequenos pedacinhos do mundo, texturas de plantas para os seus minusculos dedos. E então eu vi, na minha pretensão de apresentar um mundo que ela já conhece, o reflexo de uma nuvem se movendo em direção à suas pupilas recém estreiadas, deslizando sobre suas íris azuis, e foi assim, querendo apresentar a Terra, que ela, sem pretensão, me apresentou o céu.

domingo, 13 de setembro de 2015

Helena

Um dia você chega em casa cansado do trabalho e ouve uma frase que te transforma em 90 kg de vertigem, equilibrada sobre as 2 pernas de uma cadeirinha de plástico. "Estou grávida", só porque sua esposa parou de fazer contas e resolveu fazer figa.
Então em 9 meses você pensa em toda a sua vida, pensa que nunca mais vai conseguir ler um livro, andar de bicicleta, fazer um quadro, escrever um texto. Em 9 meses você se transforma em homem, você se transforma em mulher, você se transforma em criança, e aos poucos, lentamente,  começa a pensar que você ganhará uma amiga. Uma amiga com quem lerá junto, andará de bicicleta, fará desenhos e te dará motivos pra escrever. Até que uma noite a luz do corredor acende, a bolsa rompe, e uma criatura minúscula dilata sua realidade de uma forma que ela nunca mais poderá voltar ao tamanho que foi, cresce algo dentro do seu peito, e de forma tão imensa, que mesmo que essa coisa seja o contrário da dor, dói. E de repente você percebe que toda a sua vida você apenas existia e um dia, sem aviso nenhum, quando você menos espera, você nasce.

Em outras palavras, ter um filho é nascer fora de si.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Cigarro

Decidi parar de fumar definitivamente de novo, diferente da ultima vez em que prometi nunca mais colocar um cigarro no boca e comprei uma piteira. Acabo sempre voltando e quem me acompanha parar e subitamente me pega fumando de novo eu acabo dizendo "É que eu gostei tanto de ter parado de fumar que acabei voltando pra poder parar de novo.", mais para causar riso ao invés de uma repreensão do tipo "você precisa ter força de vontade...", como se esse valioso conselho fosse magicamente me livrar de anos de vicio. "Eu tenho muita força de vontade, amigo, o problema são as coisas que eu sinto vontade." Ou outro dos mais intimos e dogmáticos: "Você não está enganando a ninguém, só à você mesmo...", o que para mim é ótimo, porque ninguém vai me perdoar com mais facilidade do que eu mesmo. E além do mais, eu fico intragável quando paro de fumar. Com o perdão do trocadilho. O vicio, à propósito consiste em buscar sempre a primeira sensação de alguma coisa que se fez incontáveis vezes, a sensação nunca mais será a mesma, mas existe essa eterna busca pelo inédito dentro do mesmo. O cigarro para mim é um amuleto psíquico que me dá uma falsa sensação de segurança, muito provavelmente ligado à um coeficiente emocional muito fragilizado. Comparo ele à chupeta de uma criança de colo que fecha a lacuna de alguma angústia invisível, estou preso à minha fase oral. Outro "à proposito", inclusive fazendo um link: Cleyciane diz que fumar é fazer chupeta para Satanás. Ficar sem fumar pra mim me causa a sensação de que muita vida começa a entrar em meus pulmões e eu no fundo não sei administrar muita vida, "Meu Deus, o que eu faço com tanto oxigênio!? Onde vou gastar essa vida toda!?" Acho que essa sensação de muita vida me incomoda, não sei direito administrar tanta coisa assim, não sei se tenho competência para plenitudes desse tipo. Tinha diminuído para 5 cigarros diários que eu denominei "freio de mão da vida". Foi bom, me ajudou um pouco. Minha zona de conforto me incomoda, mas estar do outro lado, o lado da vida me assusta um pouco, confesso. Fumar me faz divagar sobre uma vida que não é minha a não ser em pensamento, sobre um futuro, um passado, ou um presente paralelo incrível, mas que de fato não é o meu, quando na verdade fumar me transforma numa figura muito triste que vi na minha infância num filme, um macaco velho que fumava cigarros, vício trazido obviamente por um ser humano que pretendeu humanizá-lo da pior forma possível (se é que existe uma forma boa no processo de humanização). O macaco acendia os próprios cigarros, e seus olhos melancólicos acompanhavam a fumaça que se quebrava pelas grades de ferro. A melancolia vinha de 2 prisões. E hoje eu sou esse macaco de olhar melancólico.
Fernando Sabino disse que os primeiros 10 anos de abstinência são os piores, fumei metade da minha vida, se ao menos soubesse quando eu vou morrer poderia calcular quando eu poderia parar. Poderia voltar com 60 anos, já estava nos meus planos começar a usar metanfetamina e LSD com essa idade mesmo. Dizem que o cigarro tira 8 minutos da nossa vida, mas isso é somado aos 5 minutos do tempo que se leva fumando um cigarro? Tira 3? Ou 13 minutos? Tem gente que diz também que fazer cigarros de cenoura ajuda. E o cú com a calça? Que lado que eu acendo a cenoura? Queria que alguém parasse de fumar junto comigo. Ver outro ser humano sofrendo sempre consola a gente.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Jesus era judeu e depois dele veio o cristianismo.
Maomé veio reafirmar a palavra de Cristo e depois dele veio o islamismo.
Buda só meditava e depois dele veio outro Buda.

GNT

Quero um estilo de vida GNT, morar numa chacara, parar de pagar minhas parcelas de esperança na loteria federal, ter uma bicicleta e deixar um rastro de pensamentos pelo mato, fazer barba com navalha, comer frutas e tocar trombone. Ter uma varanda que fosse o trampolim do sol e por onde chegasse em mim com mais frequência os poemas mais inusitados, que falasse da beleza das rosas e da fome do jardineiro. Ouvir samba, Cesaria Evora, Mayra Andrade, música judaica, musica do mundo, junto às minhas filhas e minha esposa, numa conexão entre os nossos silêncios. Plantar um monte de tipo de coisas. Colecionar discos, cartões postais e selos. Ganhar dinheiro com meus quadros, mas não fama. Não queria ninguém na fila da padaria me perguntando se eu sou quem eu sou, quero apenas poder comprar o pão. Nem ser eu queria, meu sonho é estar sem me notar. Passar despercebido por mim e a par de tudo e de todos. Saber de tudo um pouco, de magia negra à croché, do grande mistério das mulheres ao propósito da vida, o complexo mecanismo do ponto G e da bomba H. Ter sempre um livro de Cortazar comigo, e uma leveza como se tivesse tomado um banho frio e agora estivesse sob o sol.
E as vezes queria um terno bonito, um terno que me caisse bem e que combinasse com um mundo sem fome.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Da Gênese ao Genocídio

                                                                                                          "A gente precisa combinar de se ver"                                                                                                                  (ditado popular brasileiro)

                                                                                                           "Onde está o controle remoto?"                                                                                   (Prenúncio de um pesadelo coletivo)


A humanidade é um Deus estilhaçado. 
É um Deus que tropeçou no mundo e que se repartiu em homens atordoados 
e em mulheres que sangram, 
é um Deus ácido que se derramou em longos viadutos 
e criou crostas e crostas de cicatrizes de asfalto sobre a terra, 
que escorreu como metal derretido que vaza incandescente pelas estradas, 
em carros com adesivos "Foi Deus que me deu", 
que se estendeu sobre a superfície fina de um planeta com anemia.

A humanidade é um Deus que se  descama a todo momento 
e mesmo que a vida siga vencendo, os mortos estão em maioria.

Como me entristece e constrange esse interminável e vergonhoso momento 
em que este garçom enche meu copo, 
esse silêncio infinito. 
Esse copo nunca cheio. 
Esse "obrigado" tímido e pouco sincero. 
A forma pouco natural que as pessoas disfarçam quando alguém coloca a senha do cartão. 
"Débito ou credito"? "Nota fiscal Paulista?"
Que sentido terá o dinheiro quando César estiver com todas as moedas?
Quantos anos ainda vai durar o monopólio das cores dos Bancos e dos Postos de Gasolina nessa cidade cinza? 

Cultivo um carinho maior àqueles que tem problemas com álcool, 
àqueles que tem crises de consciência, tendências suicidas, 
àqueles que usam advertências dos maços de cigarros como cartas de tarô, 
do que aqueles que jogam futebol às quarta feiras e que vão à igreja aos Domingos, 
pedir perdão e ajuda à um Deus nórdico-árabe embalsamado e seco, 
como um camundongo encontrado à beira de um canteiro de obras 
e que não foi apto a salvar nem a si mesmo. 
Caetano lavou minha alma mais do que Jesus foi capaz, 
e por muito tempo fui o Cristo de mim mesmo, e nunca me perdoei.

O diabo é humilde. 
Pegou pouca coisa. 
Tomou um planeta pequeno com gente miúda do vasto universo. 
E deixou pra trás, cidade atrás de cidade, 
o rangido do monstro que temos que convencer às nossas crianças de que não existe. 

Existe, no entanto, essa estranha sombra,
esse monstro primário dentro de mim,
e que não sei ao certo como ele se alojou lá dentro,
nem de onde veio,
mas que crava as garras na aorta do meu coração
e tenta subir pela minha garganta,
e nos atracamos
rolando ladeira abaixo,
descendo ao meu porão, rolando com ele, até sufocá-lo,
numa incessante batalha
e eu quero arrastá-lo para cova
comigo sem que
antes ele fuja completamente
de dentro do meu peito e saia à cometer atrocidades em meu nome.

Ah, que desânimo me sobe aos braços e me acomete de tristeza as coisas mais despercebidas e pequenas...
Por que meu coração teima em ver aquilo que os olhos não sentem?

Como me mata de desgosto ver "Atenciosamente" sendo abreviado como "Att" nos e-mails.
Ver maçãs com adesivos colados nelas e marca registrada,
E como me ofende os rótulos "100% natural"
"Estamos em reforma para melhor atendê-los", 
"sorria, você está sendo filmado",
ou alguém fazendo o sinal da cruz na frente de uma igreja.
E como que quase me estraçalha a humanidade por completo ouvir de uma cancela eletrônica "boas compras". 
E de um supervisor comercial "Boas vendas!".
Que culpa de não sei de quê ao certo me abate quando vejo o retrato sorridente do funcionário do mês na parede engordurada,
que vergonha estranha a minha por não ser um homem-placa com um colar no pescoço com os dizeres " apartamentos de 80 metros quadrados com uma suite na Vila Mariana à 200 metros",
ver homens fantasiados de mascotes sob o sol tropical nos evita ao menos desse mal estar de olhares se cruzando,
e eu atravesso todos com
meu pênis,
minha pele branca,
minha heterossexualidade,
meu orgulho das coisas que me envergonham,
e a vergonha das coisas de que me orgulho.
E minha consciência pesada abaixa minha cabeça.
Que vergonha alheia a minha própria vergonha distribuída.
E no entanto que mistério ver todos com tanto medo da morte.

Onde andarão os nossos mortos?

Perdoe, Senhor, somos apenas crianças soterradas dentro de adultos.

Mas por outro lado, que alívio poder evitar conversa com gente que diz que "fica louca com oxigênio mesmo" e que ri disso, 
porque simplesmente tenho mais ternura e fascínio por alguém que me escrevesse um bilhete suicida dizendo "me matei porque estava muito quente" 
do que por alguém que me dissesse "a fila anda". Há mais beleza num homem que se degrada do que no esplendor de qualquer religião. 

Queria a beleza de um homem cego dizendo que para ele todos os homens são negros.
Ou a beleza das mulheres de tetas grandes (italianas antigas, quem sabe) que guardam dinheiro dentro do sutiã preto e que carregam baldes na cabeça, e que tem a vida dura, e cuja vida dura.
Ou até a beleza da tristeza que se sente quando se ouve dizer que uma mulher tem tetas grandes.
Ou das cidades pequenas onde se ofende pouco a terra e se onde se sente menos a culpa de viver.
Onde de tão singela a vida, Deus nos perdoa. 
Ou nos esquece.

Que mundo subcutâneo o meu...
A sensação ter o controle externo do meu corpo, governá-lo por fora, como se me assistisse e não por dentro como se tivesse alma, 
ter olhos para fora da minha cabeça, me dando coragem de ausência e fé de telespectador.
Que alívio essa mortalidade, saber que um dia irei embora com a deliciosa sensação de que estou esquecendo alguma coisa.

Mas existe um alívio ainda maior quando eu saio desse mundo de dentro da minha pele, (onde sou o Deus de tantas criaturas, que agem de forma tão natural e que nem sabem quem eu sou e que sou o Deus delas, e que talvez por isso ajam de forma tão natural), e volto pra esse mundo e percebo que não me tornei apresentador de programa de auditórios, vendedor de Polishop, agente de estrelas, gerente de banco, animador de palco, 
cujo meu total desrespeito a esse mundo paralelo irreal da qual todos fazem parte, eu nunca pertenceria.

Somos sonhos se debatendo como um cardume em convulsão, criando ondas que empurram continentes inalcançáveis.

E como me espanta a ciência moderna por colocar orelha humana nas costas de um rato e de implantarem orelhas de Mickey em Che Guevara. 
Enquanto vejo minha geração sendo formatada pelo alzheimer e pelo autismo.

E a gana, a vontade e a necessidade de vencer na vida, para poder conquistar espremedores de laranja desenhadas por Philipe Stark, cubos de gelo em formato de pinguins, avental com a estampa impressa do abdominal do David Beckham, porcarias plásticas de diferentes formas e inúmeras funções, todas essas maravilhas, todas essas coisinhas, justificam qualquer propina, qualquer desaforo, qualquer sacrifício.

E saber que nossa democracia é defendida firmemente pela 
América do norte como um peito forte e que a América latina tem o formato de um feto retorcido.
Que Batman, Homem-Aranha e Super-homem, estão sufocando os chineses comunistas com monóxido de carbono.
Mas que no meu mundo, um dia, banqueiros, políticos, latifundiários, 
irão pedir humildemente entrada nos sonhos das camareiras, 
dos operários, das domésticas e dos garçons.

Por que apesar do céu ter se desbotado dentro do olho, tem sonhos presos na minha pálpebra, 
e enquanto todos procuram o caminho das pedras, 
eu encontro rostos nas nuvens.

Porque o que me incomoda, não é um Deus cruel que nos testa com duras provas para que possamos exercer as nossas virtudes ou um demônio que nos conforta e satisfaz para que possamos nos perder de nós mesmos.
Nem um Deus cruel que nos ama, nem um diabo prestativo que nos odeia.
O que me incomoda é a criança que já fui um dia
e que me olha triste
do canto da sala.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Fui no cinema com a Bela assistir "Os vigadores 2", ao meu lado havia um cara grande e desengonçado de quase 40 anos que estava rindo das piadas mais batidas do filme, se empolgava com cada um dos super heróis com mais animação do que a própria Bela. Aquilo aos poucos foi me incomodando, comecei a achar ridiculo aquela postura, meio patético todo aquele entusiasmo infantil. Foi me dando uma espécie de vergonha alheia, se é que isso existe, e irritabilidade. Quando me olhei de fora e vi que julgava ele patético, resolvi desembrulhar esse sentimento pra ver o que tinha dentro, quando fiz isso senti eu mesmo ridículo, e surgiu por ele como se fosse uma espécie de ternura. Senti uma espécie de vergonha de mim, e ao passo que a vergonha em mim aumentava senti por ele uma espécie de compaixão. Desembrulhei então a vergonha e tinha dentro de mim um pouco de culpa, e quando dei por mim percebi que estava com um pouco de inveja. Sem que ele soubesse ficamos de bem um com um outro. E a dó que senti de mim foi aos poucos passando.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Sinal da cruz em Tiradentes

Deus fez essa terra com muito ouro na sua superfície e homens com muito sangue em seu interior. Ambos se perderam em Tiradentes, ouro e sangue. Hoje aqui só resta Deus.

Uma criança passa e faz o sinal da cruz incessantemente em frente a uma das igrejas pela qual passamos. Ela crê no Deus dependurado no altar.
Que trabalho imenso passar por Tiradentes e fazer o sinal da cruz inúmeras vezes em frente a cada uma de suas igrejas. Que estranha oferenda de hábitos.

Religião para mim é como as antigas telefonistas da década de 50 que faziam a transferência de ligação. Hoje se faz ligação direta. Não se precisa mais de telefonistas, posso fazer meu próprio telefonema. Sem religare.

Hoje vi Deus numa criança de 10 anos sob o sol, que passou e fez o sinal da cruz incessantemente em frente a uma das igrejas pela qual passamos, e se perdeu para sempre no pequeno labirinto infinito das mesmas igrejas de Tiradentes, sempre a fazer o sinal da cruz dentro do mesmo pequeno circuito em Minas Gerais.

"A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico, cujo campo próprio lhe é tudo, este campo é um império. Para o César cujo Império lhe ainda é pouco, esse Império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade não possuimos mais do que as nossas próprias sensações."

Atrás de mim, na cama, Helena dorme dentro de Malu que dorme dentro de um pequeno trecho de Tiradentes, e sinto pressionar me contra a parede o sonho que amana delas. Um sonho maior do que Minas Gerais.

A minha maior riqueza seria ser pobre em inúmeros lugares distantes como este.

A caminho de Tiradentes

Um curto registro de viagem:

Saimos com um peso e uma leveza pouco depois do almoço que não tivemos.
Com a percepção clara de que amamos e somos amados e com todo o sentido da vida nisso.

Paramos em Congonhal, na beira da estrada e comemos pasteis. A fuligem dos caminhões enegreceu o logo de Coca Cola da fachada, Malu pediu uma coca a propósito, que veio com o nome "Ezequiel", e eu tive a sensação de que a viagem ou talvez a vida nossa nessa viagem seria abençoada.
Malu nem se atentou a isso, ex-batista (ou batista enrustida), nunca conheceu a bíblia profundamente, nem sabia que Jesus já deu piti na feira.

Seguimos viagem e adentramos 3 Corações, onde fomos recebidos por uma estátua ridicula de Pelé. Talvez para dar mais realismo ao rei.

Paramos num posto de gasolina onde havia um restaurante já vazio de caminhoneiros, e o som de animais sendo abatidos ao fundo.
No caixa havia facas, canivetes, pecheiras à venda somadas a diversos tipos de revistas pornograficas, "Penthouse", "Brazil", e uma nova (?) de fotonovela chamada "Mais Prazer". Talvez para reafirmar que os homens não devam confiar em outros homens e as mulheres não devam confiar em homem algum.

Tive uma ideia de fazer um quadro em camadas de vidro 3d com recortes de revistas pornograficas com a imagem de Nossa Senhora, mas a cara de espanto e vergonha da Malu fez com que eu fosse fofamente censurado e engavetasse o projeto quando eu dividi a ideia com ela.

Lavras é horrível, e a estrada até Tiradentes é péssima, "Ezequiel" somado aos buracos da rodovia havia  se transformado numa grande queimação no meio do meu peito.

Um desenho de Jesus Cristo no parachoques de um caminhão que levava bois quase me fez bater o carro, talvez pela blasfêmia que eu havia feito com Sua mãe pela ideia do quadro. Desculpe, Senhor, nem sempre eu sei o que faço.

Terminando a via sacra, próximo a Tiradentes, as nuvens estavam baixas, talvez porque o céu quisesse ver de perto o que havia de mais sagrado e divino nessa terra, o que eu mesmo ainda não pude ver pessoalmente, as obras de Aleijadinho.

O relato é simples, mas escrever é uma maneira de ser mais leve, escrever é um maneira de esquecer. Escrever é um apêndice de lembrar.

Comunicação

O ser humano é o único animal que não consegue se comunicar. Talvez por isso a morte nos dói tanto, por que vamos embora com a sensação de que não conseguimos nos alcançar a tempo.

O que vai restar

Vai restar no mundo, além das baratas, aquele que consegue encarar no olho.

Além disso vai sobrar um fio de pipa que liga a árvore da frente da minha casa ao teto da minha casa.

Se a teoria das cordas estiver certa e Deus está a par até dos átomos, restará o fio que só eu sei que existe, caso o mundo se acabe.
Caso o mundo se acabe, se é que já não se acabou, eu não fico mais encarando esse horizonte relocado.

Nem essa vitrina com manequins de fibra de poliéster que me emprestou (enquanto o mundo não acaba) o horizonte.

Nem saio eu vasculhando à noite buscando resquícios de alguma razão,
algum sentido,

já que agora eu sei que a morte traz mais beleza ao que tem pouca, e menos horror ao que tem muita.

domingo, 19 de abril de 2015

Vida

Olhando as pessoas na padaria eu lembrei que vi em algum lugar que existe uma legião de almas ansiosas por nascer na terra e ter uma experiência de vida.

Pra pilotar corpos de carne e osso, cheios de experiências.
Passar pelo trauma de nascer, assaduras, medo de alienigenas, fantasmas, de mostrar o boletim pros pais, ter uma unha encravada, a cueca ou a calcinha entrando na bunda, operar fimose, a primeira menstruação, ouvir as conversas das senhoras sobre cancer nos transportes públicos, o medo do cancer, o primeiro amor, o medo da morte, contas a pagar, carne entre os dentes, administrar todos os pelos do corpo e assistir a morte dos outros chegando pela borda como um aviso de cautela...

Na padaria, além dos outros eu via as minhas mãos e a ponta do meu nariz. Antes do espelho a consciencia do "eu" devia se dar pelas mãos e pela pontinha do nariz que os olhos casualmente enxergam.
Toda uma consciência humana na pontinha do nariz.
É muita responsabilidade para um nariz carregar a condição humana nas costas.
Muita responsabilidade.

Talvez por isso inventamos o espelho, embora o espelho seja uma armadilha. Ele não mostra o que somos, ele mostra o oposto do que somos. A palavra AMOR por exemplo vira ROMA, um dos impérios mais violentos que o mundo já teve, e que por ventura veio a assassinar Cristo, o amor na terra. O espelho mostra um corpo de carne e osso que nunca age naturalmente em sua frente, não mostra uma alma que já foi ansiosa para nascer.
O mundo virou do avesso desde quando inventaram o espelho.

Na padaria tinha mais espaço vazio do que gente.

Cabia mais gente no mundo.

Mais gente com muito medo.

Saber que todo mundo sente medo enche a gente de coragem.

Helena

Quando minha filha estiver com idade pra entender, vou lhe contar verdades que ninguém sabe ainda.

Vou contar por exemplo que a árvore é um raio de madeira que se desprende do chão. E que a árvore trinca a base do ar.
Vou dizer a ela que quando ela plantar uma bananeira, ela vai carregar o mundo nas mãos.

Vou confessar que o homem não parou de fazer barulho desde que veio ao mundo e que não sabemos se o fogo quer nos contar alguma coisa, ou que língua fala os rios.

Vou explicar que a sombra é o sol enxugando a noite que grudou na gente e nas coisas que ficaram imersas no seu ventre.

E quando minha filha estiver com idade para poder falar, vou lhe perguntar coisas que ninguém entende.
Vou lhe perguntar, por exemplo: "Como era o lugar de onde você veio?"

Beat

No meu bar vai ter piso quadriculado. Preto e branco. E não vai ser alinhado com nenhuma parede, nem vai ser na diagonal, pra celebrar que a gente é torto. Vai ser só pra gente se lembrar que é feito de sombra e alma, e que somos maus e que somos bons. Ou talvez que não somos nada.

No bar vai ter manequins saindo no espelho atrás do caixa. O caixa não aceita nenhum tipo de cartão, nem cheque, nem dinheiro.

Vai ter arestas que não se encontram em nenhum dos 3 pontos e todos vão se perguntar "como isso é possivel?". No meu bar vai ter gente com ataque epilético por causa disso. Mas eu não vou rir, só sorrir no meu bar. Ninguém nunca vai morrer no meu bar. Meu bar foi projetado por Italo Calvino.

No meu bar vai ter daqui a pouco, um corredor que afunila cada vez mais pra dentro de nada, onde vai ter uma portinha minúscula, com um espelho dentro e todos dirão sorrido "Meo Deus! Que lugar é esse!?".

Só preciso ver a cor das paredes. Nenhuma cor da Pantone se repete em nenhuma das 1.637.489 paredes do meu bar. Aqui não tem teto que seja menor do que a Via láctea.

Vai ter fotos de vários artistas e quadros, e vai tocar Miles Davis e Fela Kuti.
Pra quem acredita em céu, meu bar vai ser o céu.
Pra quem acredita em inferno, eles nunca vão saber que meu bar existe.

E assim meu bar vai ser perfeito.

Na porta do banheiro vai ter uma placa com um desenho de um fluxo de urina caindo reto, no feminimo;
e um caindo pra fora no do menino, e na porta de ambos vai estar escrito "mortais".
Vai ter pornagrafia de Milo Manara e Carlos Zéfiro nas pardes e nos mictórios, e todos vão sorrir e lembrar que estão vivos. Ninguém se ofende onde eu estou.

Mulher vai ser tratada como mulher no meu bar, e todo mundo no meu bar sabe tratar uma mulher, e sabe que nenhuma mulher precisa de tratamento especial. Ou talvez precise. Ou não... mas....
Mas ninguém pensa aqui, ninguém tem razão.

Vai ter muito viado no meu bar e todo mundo vai adorar os viados no meu bar. E todo mundo vai chamá-los de viados e eles vão se chamar de viados porque "viado" é uma coisa carinhosa. E os negros no meu bar vão ser maioria, e ninguém vai chamá-los de "afrodescendentes", nem mesmo negros. Não tem política no meu bar. Ninguém quer o mal de ninguém. E ninguém quer o bem de ninguém, porque ninguém quer querer. Ninguém quer nada no meu bar. Meu bar é escuro e tudo é igual e por isso tudo é tão claro. Nada se perde, e querer é perder.

Ninguém fala mau de Cristo no meu bar porque Cristo está atrasado e ninguém fala mal de ninguém pelas costas no meu bar. Na verdade, no meu bar, ninguém fala de ninguém, as pessoas falam de idéias no meu bar.

O meu bar se chama "beat", ele é a temporário e atemporal.
Meu bar tem putas e beatas que se lembram uma da outra quando elas eram crianças, e se enamoram.
É engraçado.
Meu bar tem Caetano tocando Megadeth e Bruce Dickinson canta "Numa casa portuguesa".

As pessoas chamam-se de "queridas" no meu bar, e eu sei que é de verdade porque a voz não dói o ouvido da gente de repente, e a atmosfera não pesa como chumbo, mas como éter, e por isso sei que é verdadeiro, sei, por que é quase irreal.

Meu bar vende litros e litros de algo por dia e todos voltam rico.

Meu bar tem um piano e o teto do comodo principal é a cidade vista de cima, com toda a sua topografia, suas casinhas, suas arvorezinhas, e conforme vai descendo pelas paredes, vai se dando o céu, tanto que o piso, onde está o piano, é feito de nuvens. Todos acham meu bar muito louco e eu tenho receio que se eu falar do meu bar, ele nunca aconteça realmente um dia...

Meu bar não é bem um bar, mas você sabe disso, você sabe do que se trata meu bar. E eu, até esse momento, nem tinha reparado que você estava aqui dentro. Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa no final do corredor, por favor, tire os sapatos.