terça-feira, 28 de abril de 2015

Sinal da cruz em Tiradentes

Deus fez essa terra com muito ouro na sua superfície e homens com muito sangue em seu interior. Ambos se perderam em Tiradentes, ouro e sangue. Hoje aqui só resta Deus.

Uma criança passa e faz o sinal da cruz incessantemente em frente a uma das igrejas pela qual passamos. Ela crê no Deus dependurado no altar.
Que trabalho imenso passar por Tiradentes e fazer o sinal da cruz inúmeras vezes em frente a cada uma de suas igrejas. Que estranha oferenda de hábitos.

Religião para mim é como as antigas telefonistas da década de 50 que faziam a transferência de ligação. Hoje se faz ligação direta. Não se precisa mais de telefonistas, posso fazer meu próprio telefonema. Sem religare.

Hoje vi Deus numa criança de 10 anos sob o sol, que passou e fez o sinal da cruz incessantemente em frente a uma das igrejas pela qual passamos, e se perdeu para sempre no pequeno labirinto infinito das mesmas igrejas de Tiradentes, sempre a fazer o sinal da cruz dentro do mesmo pequeno circuito em Minas Gerais.

"A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico, cujo campo próprio lhe é tudo, este campo é um império. Para o César cujo Império lhe ainda é pouco, esse Império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade não possuimos mais do que as nossas próprias sensações."

Atrás de mim, na cama, Helena dorme dentro de Malu que dorme dentro de um pequeno trecho de Tiradentes, e sinto pressionar me contra a parede o sonho que amana delas. Um sonho maior do que Minas Gerais.

A minha maior riqueza seria ser pobre em inúmeros lugares distantes como este.

A caminho de Tiradentes

Um curto registro de viagem:

Saimos com um peso e uma leveza pouco depois do almoço que não tivemos.
Com a percepção clara de que amamos e somos amados e com todo o sentido da vida nisso.

Paramos em Congonhal, na beira da estrada e comemos pasteis. A fuligem dos caminhões enegreceu o logo de Coca Cola da fachada, Malu pediu uma coca a propósito, que veio com o nome "Ezequiel", e eu tive a sensação de que a viagem ou talvez a vida nossa nessa viagem seria abençoada.
Malu nem se atentou a isso, ex-batista (ou batista enrustida), nunca conheceu a bíblia profundamente, nem sabia que Jesus já deu piti na feira.

Seguimos viagem e adentramos 3 Corações, onde fomos recebidos por uma estátua ridicula de Pelé. Talvez para dar mais realismo ao rei.

Paramos num posto de gasolina onde havia um restaurante já vazio de caminhoneiros, e o som de animais sendo abatidos ao fundo.
No caixa havia facas, canivetes, pecheiras à venda somadas a diversos tipos de revistas pornograficas, "Penthouse", "Brazil", e uma nova (?) de fotonovela chamada "Mais Prazer". Talvez para reafirmar que os homens não devam confiar em outros homens e as mulheres não devam confiar em homem algum.

Tive uma ideia de fazer um quadro em camadas de vidro 3d com recortes de revistas pornograficas com a imagem de Nossa Senhora, mas a cara de espanto e vergonha da Malu fez com que eu fosse fofamente censurado e engavetasse o projeto quando eu dividi a ideia com ela.

Lavras é horrível, e a estrada até Tiradentes é péssima, "Ezequiel" somado aos buracos da rodovia havia  se transformado numa grande queimação no meio do meu peito.

Um desenho de Jesus Cristo no parachoques de um caminhão que levava bois quase me fez bater o carro, talvez pela blasfêmia que eu havia feito com Sua mãe pela ideia do quadro. Desculpe, Senhor, nem sempre eu sei o que faço.

Terminando a via sacra, próximo a Tiradentes, as nuvens estavam baixas, talvez porque o céu quisesse ver de perto o que havia de mais sagrado e divino nessa terra, o que eu mesmo ainda não pude ver pessoalmente, as obras de Aleijadinho.

O relato é simples, mas escrever é uma maneira de ser mais leve, escrever é um maneira de esquecer. Escrever é um apêndice de lembrar.

Comunicação

O ser humano é o único animal que não consegue se comunicar. Talvez por isso a morte nos dói tanto, por que vamos embora com a sensação de que não conseguimos nos alcançar a tempo.

O que vai restar

Vai restar no mundo, além das baratas, aquele que consegue encarar no olho.

Além disso vai sobrar um fio de pipa que liga a árvore da frente da minha casa ao teto da minha casa.

Se a teoria das cordas estiver certa e Deus está a par até dos átomos, restará o fio que só eu sei que existe, caso o mundo se acabe.
Caso o mundo se acabe, se é que já não se acabou, eu não fico mais encarando esse horizonte relocado.

Nem essa vitrina com manequins de fibra de poliéster que me emprestou (enquanto o mundo não acaba) o horizonte.

Nem saio eu vasculhando à noite buscando resquícios de alguma razão,
algum sentido,

já que agora eu sei que a morte traz mais beleza ao que tem pouca, e menos horror ao que tem muita.

domingo, 19 de abril de 2015

Vida

Olhando as pessoas na padaria eu lembrei que vi em algum lugar que existe uma legião de almas ansiosas por nascer na terra e ter uma experiência de vida.

Pra pilotar corpos de carne e osso, cheios de experiências.
Passar pelo trauma de nascer, assaduras, medo de alienigenas, fantasmas, de mostrar o boletim pros pais, ter uma unha encravada, a cueca ou a calcinha entrando na bunda, operar fimose, a primeira menstruação, ouvir as conversas das senhoras sobre cancer nos transportes públicos, o medo do cancer, o primeiro amor, o medo da morte, contas a pagar, carne entre os dentes, administrar todos os pelos do corpo e assistir a morte dos outros chegando pela borda como um aviso de cautela...

Na padaria, além dos outros eu via as minhas mãos e a ponta do meu nariz. Antes do espelho a consciencia do "eu" devia se dar pelas mãos e pela pontinha do nariz que os olhos casualmente enxergam.
Toda uma consciência humana na pontinha do nariz.
É muita responsabilidade para um nariz carregar a condição humana nas costas.
Muita responsabilidade.

Talvez por isso inventamos o espelho, embora o espelho seja uma armadilha. Ele não mostra o que somos, ele mostra o oposto do que somos. A palavra AMOR por exemplo vira ROMA, um dos impérios mais violentos que o mundo já teve, e que por ventura veio a assassinar Cristo, o amor na terra. O espelho mostra um corpo de carne e osso que nunca age naturalmente em sua frente, não mostra uma alma que já foi ansiosa para nascer.
O mundo virou do avesso desde quando inventaram o espelho.

Na padaria tinha mais espaço vazio do que gente.

Cabia mais gente no mundo.

Mais gente com muito medo.

Saber que todo mundo sente medo enche a gente de coragem.

Helena

Quando minha filha estiver com idade pra entender, vou lhe contar verdades que ninguém sabe ainda.

Vou contar por exemplo que a árvore é um raio de madeira que se desprende do chão. E que a árvore trinca a base do ar.
Vou dizer a ela que quando ela plantar uma bananeira, ela vai carregar o mundo nas mãos.

Vou confessar que o homem não parou de fazer barulho desde que veio ao mundo e que não sabemos se o fogo quer nos contar alguma coisa, ou que língua fala os rios.

Vou explicar que a sombra é o sol enxugando a noite que grudou na gente e nas coisas que ficaram imersas no seu ventre.

E quando minha filha estiver com idade para poder falar, vou lhe perguntar coisas que ninguém entende.
Vou lhe perguntar, por exemplo: "Como era o lugar de onde você veio?"

Beat

No meu bar vai ter piso quadriculado. Preto e branco. E não vai ser alinhado com nenhuma parede, nem vai ser na diagonal, pra celebrar que a gente é torto. Vai ser só pra gente se lembrar que é feito de sombra e alma, e que somos maus e que somos bons. Ou talvez que não somos nada.

No bar vai ter manequins saindo no espelho atrás do caixa. O caixa não aceita nenhum tipo de cartão, nem cheque, nem dinheiro.

Vai ter arestas que não se encontram em nenhum dos 3 pontos e todos vão se perguntar "como isso é possivel?". No meu bar vai ter gente com ataque epilético por causa disso. Mas eu não vou rir, só sorrir no meu bar. Ninguém nunca vai morrer no meu bar. Meu bar foi projetado por Italo Calvino.

No meu bar vai ter daqui a pouco, um corredor que afunila cada vez mais pra dentro de nada, onde vai ter uma portinha minúscula, com um espelho dentro e todos dirão sorrido "Meo Deus! Que lugar é esse!?".

Só preciso ver a cor das paredes. Nenhuma cor da Pantone se repete em nenhuma das 1.637.489 paredes do meu bar. Aqui não tem teto que seja menor do que a Via láctea.

Vai ter fotos de vários artistas e quadros, e vai tocar Miles Davis e Fela Kuti.
Pra quem acredita em céu, meu bar vai ser o céu.
Pra quem acredita em inferno, eles nunca vão saber que meu bar existe.

E assim meu bar vai ser perfeito.

Na porta do banheiro vai ter uma placa com um desenho de um fluxo de urina caindo reto, no feminimo;
e um caindo pra fora no do menino, e na porta de ambos vai estar escrito "mortais".
Vai ter pornagrafia de Milo Manara e Carlos Zéfiro nas pardes e nos mictórios, e todos vão sorrir e lembrar que estão vivos. Ninguém se ofende onde eu estou.

Mulher vai ser tratada como mulher no meu bar, e todo mundo no meu bar sabe tratar uma mulher, e sabe que nenhuma mulher precisa de tratamento especial. Ou talvez precise. Ou não... mas....
Mas ninguém pensa aqui, ninguém tem razão.

Vai ter muito viado no meu bar e todo mundo vai adorar os viados no meu bar. E todo mundo vai chamá-los de viados e eles vão se chamar de viados porque "viado" é uma coisa carinhosa. E os negros no meu bar vão ser maioria, e ninguém vai chamá-los de "afrodescendentes", nem mesmo negros. Não tem política no meu bar. Ninguém quer o mal de ninguém. E ninguém quer o bem de ninguém, porque ninguém quer querer. Ninguém quer nada no meu bar. Meu bar é escuro e tudo é igual e por isso tudo é tão claro. Nada se perde, e querer é perder.

Ninguém fala mau de Cristo no meu bar porque Cristo está atrasado e ninguém fala mal de ninguém pelas costas no meu bar. Na verdade, no meu bar, ninguém fala de ninguém, as pessoas falam de idéias no meu bar.

O meu bar se chama "beat", ele é a temporário e atemporal.
Meu bar tem putas e beatas que se lembram uma da outra quando elas eram crianças, e se enamoram.
É engraçado.
Meu bar tem Caetano tocando Megadeth e Bruce Dickinson canta "Numa casa portuguesa".

As pessoas chamam-se de "queridas" no meu bar, e eu sei que é de verdade porque a voz não dói o ouvido da gente de repente, e a atmosfera não pesa como chumbo, mas como éter, e por isso sei que é verdadeiro, sei, por que é quase irreal.

Meu bar vende litros e litros de algo por dia e todos voltam rico.

Meu bar tem um piano e o teto do comodo principal é a cidade vista de cima, com toda a sua topografia, suas casinhas, suas arvorezinhas, e conforme vai descendo pelas paredes, vai se dando o céu, tanto que o piso, onde está o piano, é feito de nuvens. Todos acham meu bar muito louco e eu tenho receio que se eu falar do meu bar, ele nunca aconteça realmente um dia...

Meu bar não é bem um bar, mas você sabe disso, você sabe do que se trata meu bar. E eu, até esse momento, nem tinha reparado que você estava aqui dentro. Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa no final do corredor, por favor, tire os sapatos.