quarta-feira, 27 de maio de 2015

Da Gênese ao Genocídio

                                                                                                          "A gente precisa combinar de se ver"                                                                                                                  (ditado popular brasileiro)

                                                                                                           "Onde está o controle remoto?"                                                                                   (Prenúncio de um pesadelo coletivo)


A humanidade é um Deus estilhaçado. 
É um Deus que tropeçou no mundo e que se repartiu em homens atordoados 
e em mulheres que sangram, 
é um Deus ácido que se derramou em longos viadutos 
e criou crostas e crostas de cicatrizes de asfalto sobre a terra, 
que escorreu como metal derretido que vaza incandescente pelas estradas, 
em carros com adesivos "Foi Deus que me deu", 
que se estendeu sobre a superfície fina de um planeta com anemia.

A humanidade é um Deus que se  descama a todo momento 
e mesmo que a vida siga vencendo, os mortos estão em maioria.

Como me entristece e constrange esse interminável e vergonhoso momento 
em que este garçom enche meu copo, 
esse silêncio infinito. 
Esse copo nunca cheio. 
Esse "obrigado" tímido e pouco sincero. 
A forma pouco natural que as pessoas disfarçam quando alguém coloca a senha do cartão. 
"Débito ou credito"? "Nota fiscal Paulista?"
Que sentido terá o dinheiro quando César estiver com todas as moedas?
Quantos anos ainda vai durar o monopólio das cores dos Bancos e dos Postos de Gasolina nessa cidade cinza? 

Cultivo um carinho maior àqueles que tem problemas com álcool, 
àqueles que tem crises de consciência, tendências suicidas, 
àqueles que usam advertências dos maços de cigarros como cartas de tarô, 
do que aqueles que jogam futebol às quarta feiras e que vão à igreja aos Domingos, 
pedir perdão e ajuda à um Deus nórdico-árabe embalsamado e seco, 
como um camundongo encontrado à beira de um canteiro de obras 
e que não foi apto a salvar nem a si mesmo. 
Caetano lavou minha alma mais do que Jesus foi capaz, 
e por muito tempo fui o Cristo de mim mesmo, e nunca me perdoei.

O diabo é humilde. 
Pegou pouca coisa. 
Tomou um planeta pequeno com gente miúda do vasto universo. 
E deixou pra trás, cidade atrás de cidade, 
o rangido do monstro que temos que convencer às nossas crianças de que não existe. 

Existe, no entanto, essa estranha sombra,
esse monstro primário dentro de mim,
e que não sei ao certo como ele se alojou lá dentro,
nem de onde veio,
mas que crava as garras na aorta do meu coração
e tenta subir pela minha garganta,
e nos atracamos
rolando ladeira abaixo,
descendo ao meu porão, rolando com ele, até sufocá-lo,
numa incessante batalha
e eu quero arrastá-lo para cova
comigo sem que
antes ele fuja completamente
de dentro do meu peito e saia à cometer atrocidades em meu nome.

Ah, que desânimo me sobe aos braços e me acomete de tristeza as coisas mais despercebidas e pequenas...
Por que meu coração teima em ver aquilo que os olhos não sentem?

Como me mata de desgosto ver "Atenciosamente" sendo abreviado como "Att" nos e-mails.
Ver maçãs com adesivos colados nelas e marca registrada,
E como me ofende os rótulos "100% natural"
"Estamos em reforma para melhor atendê-los", 
"sorria, você está sendo filmado",
ou alguém fazendo o sinal da cruz na frente de uma igreja.
E como que quase me estraçalha a humanidade por completo ouvir de uma cancela eletrônica "boas compras". 
E de um supervisor comercial "Boas vendas!".
Que culpa de não sei de quê ao certo me abate quando vejo o retrato sorridente do funcionário do mês na parede engordurada,
que vergonha estranha a minha por não ser um homem-placa com um colar no pescoço com os dizeres " apartamentos de 80 metros quadrados com uma suite na Vila Mariana à 200 metros",
ver homens fantasiados de mascotes sob o sol tropical nos evita ao menos desse mal estar de olhares se cruzando,
e eu atravesso todos com
meu pênis,
minha pele branca,
minha heterossexualidade,
meu orgulho das coisas que me envergonham,
e a vergonha das coisas de que me orgulho.
E minha consciência pesada abaixa minha cabeça.
Que vergonha alheia a minha própria vergonha distribuída.
E no entanto que mistério ver todos com tanto medo da morte.

Onde andarão os nossos mortos?

Perdoe, Senhor, somos apenas crianças soterradas dentro de adultos.

Mas por outro lado, que alívio poder evitar conversa com gente que diz que "fica louca com oxigênio mesmo" e que ri disso, 
porque simplesmente tenho mais ternura e fascínio por alguém que me escrevesse um bilhete suicida dizendo "me matei porque estava muito quente" 
do que por alguém que me dissesse "a fila anda". Há mais beleza num homem que se degrada do que no esplendor de qualquer religião. 

Queria a beleza de um homem cego dizendo que para ele todos os homens são negros.
Ou a beleza das mulheres de tetas grandes (italianas antigas, quem sabe) que guardam dinheiro dentro do sutiã preto e que carregam baldes na cabeça, e que tem a vida dura, e cuja vida dura.
Ou até a beleza da tristeza que se sente quando se ouve dizer que uma mulher tem tetas grandes.
Ou das cidades pequenas onde se ofende pouco a terra e se onde se sente menos a culpa de viver.
Onde de tão singela a vida, Deus nos perdoa. 
Ou nos esquece.

Que mundo subcutâneo o meu...
A sensação ter o controle externo do meu corpo, governá-lo por fora, como se me assistisse e não por dentro como se tivesse alma, 
ter olhos para fora da minha cabeça, me dando coragem de ausência e fé de telespectador.
Que alívio essa mortalidade, saber que um dia irei embora com a deliciosa sensação de que estou esquecendo alguma coisa.

Mas existe um alívio ainda maior quando eu saio desse mundo de dentro da minha pele, (onde sou o Deus de tantas criaturas, que agem de forma tão natural e que nem sabem quem eu sou e que sou o Deus delas, e que talvez por isso ajam de forma tão natural), e volto pra esse mundo e percebo que não me tornei apresentador de programa de auditórios, vendedor de Polishop, agente de estrelas, gerente de banco, animador de palco, 
cujo meu total desrespeito a esse mundo paralelo irreal da qual todos fazem parte, eu nunca pertenceria.

Somos sonhos se debatendo como um cardume em convulsão, criando ondas que empurram continentes inalcançáveis.

E como me espanta a ciência moderna por colocar orelha humana nas costas de um rato e de implantarem orelhas de Mickey em Che Guevara. 
Enquanto vejo minha geração sendo formatada pelo alzheimer e pelo autismo.

E a gana, a vontade e a necessidade de vencer na vida, para poder conquistar espremedores de laranja desenhadas por Philipe Stark, cubos de gelo em formato de pinguins, avental com a estampa impressa do abdominal do David Beckham, porcarias plásticas de diferentes formas e inúmeras funções, todas essas maravilhas, todas essas coisinhas, justificam qualquer propina, qualquer desaforo, qualquer sacrifício.

E saber que nossa democracia é defendida firmemente pela 
América do norte como um peito forte e que a América latina tem o formato de um feto retorcido.
Que Batman, Homem-Aranha e Super-homem, estão sufocando os chineses comunistas com monóxido de carbono.
Mas que no meu mundo, um dia, banqueiros, políticos, latifundiários, 
irão pedir humildemente entrada nos sonhos das camareiras, 
dos operários, das domésticas e dos garçons.

Por que apesar do céu ter se desbotado dentro do olho, tem sonhos presos na minha pálpebra, 
e enquanto todos procuram o caminho das pedras, 
eu encontro rostos nas nuvens.

Porque o que me incomoda, não é um Deus cruel que nos testa com duras provas para que possamos exercer as nossas virtudes ou um demônio que nos conforta e satisfaz para que possamos nos perder de nós mesmos.
Nem um Deus cruel que nos ama, nem um diabo prestativo que nos odeia.
O que me incomoda é a criança que já fui um dia
e que me olha triste
do canto da sala.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Fui no cinema com a Bela assistir "Os vigadores 2", ao meu lado havia um cara grande e desengonçado de quase 40 anos que estava rindo das piadas mais batidas do filme, se empolgava com cada um dos super heróis com mais animação do que a própria Bela. Aquilo aos poucos foi me incomodando, comecei a achar ridiculo aquela postura, meio patético todo aquele entusiasmo infantil. Foi me dando uma espécie de vergonha alheia, se é que isso existe, e irritabilidade. Quando me olhei de fora e vi que julgava ele patético, resolvi desembrulhar esse sentimento pra ver o que tinha dentro, quando fiz isso senti eu mesmo ridículo, e surgiu por ele como se fosse uma espécie de ternura. Senti uma espécie de vergonha de mim, e ao passo que a vergonha em mim aumentava senti por ele uma espécie de compaixão. Desembrulhei então a vergonha e tinha dentro de mim um pouco de culpa, e quando dei por mim percebi que estava com um pouco de inveja. Sem que ele soubesse ficamos de bem um com um outro. E a dó que senti de mim foi aos poucos passando.