domingo, 19 de abril de 2015

Beat

No meu bar vai ter piso quadriculado. Preto e branco. E não vai ser alinhado com nenhuma parede, nem vai ser na diagonal, pra celebrar que a gente é torto. Vai ser só pra gente se lembrar que é feito de sombra e alma, e que somos maus e que somos bons. Ou talvez que não somos nada.

No bar vai ter manequins saindo no espelho atrás do caixa. O caixa não aceita nenhum tipo de cartão, nem cheque, nem dinheiro.

Vai ter arestas que não se encontram em nenhum dos 3 pontos e todos vão se perguntar "como isso é possivel?". No meu bar vai ter gente com ataque epilético por causa disso. Mas eu não vou rir, só sorrir no meu bar. Ninguém nunca vai morrer no meu bar. Meu bar foi projetado por Italo Calvino.

No meu bar vai ter daqui a pouco, um corredor que afunila cada vez mais pra dentro de nada, onde vai ter uma portinha minúscula, com um espelho dentro e todos dirão sorrido "Meo Deus! Que lugar é esse!?".

Só preciso ver a cor das paredes. Nenhuma cor da Pantone se repete em nenhuma das 1.637.489 paredes do meu bar. Aqui não tem teto que seja menor do que a Via láctea.

Vai ter fotos de vários artistas e quadros, e vai tocar Miles Davis e Fela Kuti.
Pra quem acredita em céu, meu bar vai ser o céu.
Pra quem acredita em inferno, eles nunca vão saber que meu bar existe.

E assim meu bar vai ser perfeito.

Na porta do banheiro vai ter uma placa com um desenho de um fluxo de urina caindo reto, no feminimo;
e um caindo pra fora no do menino, e na porta de ambos vai estar escrito "mortais".
Vai ter pornagrafia de Milo Manara e Carlos Zéfiro nas pardes e nos mictórios, e todos vão sorrir e lembrar que estão vivos. Ninguém se ofende onde eu estou.

Mulher vai ser tratada como mulher no meu bar, e todo mundo no meu bar sabe tratar uma mulher, e sabe que nenhuma mulher precisa de tratamento especial. Ou talvez precise. Ou não... mas....
Mas ninguém pensa aqui, ninguém tem razão.

Vai ter muito viado no meu bar e todo mundo vai adorar os viados no meu bar. E todo mundo vai chamá-los de viados e eles vão se chamar de viados porque "viado" é uma coisa carinhosa. E os negros no meu bar vão ser maioria, e ninguém vai chamá-los de "afrodescendentes", nem mesmo negros. Não tem política no meu bar. Ninguém quer o mal de ninguém. E ninguém quer o bem de ninguém, porque ninguém quer querer. Ninguém quer nada no meu bar. Meu bar é escuro e tudo é igual e por isso tudo é tão claro. Nada se perde, e querer é perder.

Ninguém fala mau de Cristo no meu bar porque Cristo está atrasado e ninguém fala mal de ninguém pelas costas no meu bar. Na verdade, no meu bar, ninguém fala de ninguém, as pessoas falam de idéias no meu bar.

O meu bar se chama "beat", ele é a temporário e atemporal.
Meu bar tem putas e beatas que se lembram uma da outra quando elas eram crianças, e se enamoram.
É engraçado.
Meu bar tem Caetano tocando Megadeth e Bruce Dickinson canta "Numa casa portuguesa".

As pessoas chamam-se de "queridas" no meu bar, e eu sei que é de verdade porque a voz não dói o ouvido da gente de repente, e a atmosfera não pesa como chumbo, mas como éter, e por isso sei que é verdadeiro, sei, por que é quase irreal.

Meu bar vende litros e litros de algo por dia e todos voltam rico.

Meu bar tem um piano e o teto do comodo principal é a cidade vista de cima, com toda a sua topografia, suas casinhas, suas arvorezinhas, e conforme vai descendo pelas paredes, vai se dando o céu, tanto que o piso, onde está o piano, é feito de nuvens. Todos acham meu bar muito louco e eu tenho receio que se eu falar do meu bar, ele nunca aconteça realmente um dia...

Meu bar não é bem um bar, mas você sabe disso, você sabe do que se trata meu bar. E eu, até esse momento, nem tinha reparado que você estava aqui dentro. Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa no final do corredor, por favor, tire os sapatos.

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