quinta-feira, 1 de setembro de 2016

1 ano da Helena

Filhinha, há um ano você me deu a honra e a responsabilidade de poder ajudar a edificar uma mulher. E em um ano fez finalmente eu conseguir remover o passado e o futuro de mim e me sincronizar no presente, por que é preciso ficar atento sempre, a cada segundo, é preciso não esquecer cada minúsculo (e tudo ainda é tão minúsculo) detalhe seu, que muda tão pouco, mas muda tão rápido. 
Preciso me lembrar da forma que encaixamos nossos olhos pela primeira vez junto à janela, o jeitinho que você ficava quando te dava banho, a forma que você sorri quando eu invento uma forma de transcender o seu e o meu abecedário tão pobre para um sentimento tão vasto, a maneira que sua mãozinha foi ganhando vida até se transformar numa arma perigosa, a carinha que vc faz quando te canto Caetano, o trabalho que você me deu para que eu pudesse conquistá-la, esse cheirinho da sua pele que se parece muito com seu temperamento, doce e azedinho. E a forma que você adormece sobre meu braço, que também adormece, e seu sono me enche de alívio e saudade.
A forma que, por conta de tudo isso, você preencheu minha alma e meu corpo, com um medo terrível, que eu nunca tive da vida, e desenvolve aos poucos em mim, assim como você desenvolve, uma espécie nova de coragem.
Você nascer me fez lembrar algo que eu havia esquecido há muito tempo, me lembrou que eu te amava desde quanto eu tinha o seu tamanho.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Fiz vários planos de coisas pra fazer com a Helena; tomar a primeira chuva, levá-la a rodas de samba, até levá-la ao mercado pra desenhar peixes, encontrar o meio ideal de inserir sua pequena e delicada existência à engrenagem movediça e fervilhante das cidades, queria apresentar o mundo à ela, apresentar músicas do mundo todo, várias culturas, vários costumes, várias historias. "O mundo não é feito de átomos, é feito de histórias." E esses dias dirigindo pensei na anatomia da mulher e do homem, o homem nasceu com um falo, como uma seta, e saiu a desbravar o mundo, guiado pela sua seta, a mulher por sua vez nasceu com com uma reentrância, tudo aquilo que o homem sai buscando, todo o mistério do mundo e da vida se afunila para dentro da mulher, todo o segredo que o homem busca incansavelmente, a mulher vem absorvendo com sua anatomia por milhares de anos, naturalmente. Por isso tem um sentido à mais do que nós. Por isso faz mais sentido no mundo mulher, porque mulher vem sentindo melhor o mundo. Então qual era o propósito de eu apresentar o mundo pra minha filha? Um mundo que no fundo ela já conhece melhor do que eu? Ela me admiraria por consolo, pela intenção? Claro que eu estou falando sobre estereótipos psicologicos, hj em dia a mulher é muito mais desbravadora do que nós. Talvez sempre tenham sido. De qualquer forma, estava com a Helena no colo, e mostrava pra ela pequenos pedacinhos do mundo, texturas de plantas para os seus minusculos dedos. E então eu vi, na minha pretensão de apresentar um mundo que ela já conhece, o reflexo de uma nuvem se movendo em direção à suas pupilas recém estreiadas, deslizando sobre suas íris azuis, e foi assim, querendo apresentar a Terra, que ela, sem pretensão, me apresentou o céu.

domingo, 13 de setembro de 2015

Helena

Um dia você chega em casa cansado do trabalho e ouve uma frase que te transforma em 90 kg de vertigem, equilibrada sobre as 2 pernas de uma cadeirinha de plástico. "Estou grávida", só porque sua esposa parou de fazer contas e resolveu fazer figa.
Então em 9 meses você pensa em toda a sua vida, pensa que nunca mais vai conseguir ler um livro, andar de bicicleta, fazer um quadro, escrever um texto. Em 9 meses você se transforma em homem, você se transforma em mulher, você se transforma em criança, e aos poucos, lentamente,  começa a pensar que você ganhará uma amiga. Uma amiga com quem lerá junto, andará de bicicleta, fará desenhos e te dará motivos pra escrever. Até que uma noite a luz do corredor acende, a bolsa rompe, e uma criatura minúscula dilata sua realidade de uma forma que ela nunca mais poderá voltar ao tamanho que foi, cresce algo dentro do seu peito, e de forma tão imensa, que mesmo que essa coisa seja o contrário da dor, dói. E de repente você percebe que toda a sua vida você apenas existia e um dia, sem aviso nenhum, quando você menos espera, você nasce.

Em outras palavras, ter um filho é nascer fora de si.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Cigarro

Decidi parar de fumar definitivamente de novo, diferente da ultima vez em que prometi nunca mais colocar um cigarro no boca e comprei uma piteira. Acabo sempre voltando e quem me acompanha parar e subitamente me pega fumando de novo eu acabo dizendo "É que eu gostei tanto de ter parado de fumar que acabei voltando pra poder parar de novo.", mais para causar riso ao invés de uma repreensão do tipo "você precisa ter força de vontade...", como se esse valioso conselho fosse magicamente me livrar de anos de vicio. "Eu tenho muita força de vontade, amigo, o problema são as coisas que eu sinto vontade." Ou outro dos mais intimos e dogmáticos: "Você não está enganando a ninguém, só à você mesmo...", o que para mim é ótimo, porque ninguém vai me perdoar com mais facilidade do que eu mesmo. E além do mais, eu fico intragável quando paro de fumar. Com o perdão do trocadilho. O vicio, à propósito consiste em buscar sempre a primeira sensação de alguma coisa que se fez incontáveis vezes, a sensação nunca mais será a mesma, mas existe essa eterna busca pelo inédito dentro do mesmo. O cigarro para mim é um amuleto psíquico que me dá uma falsa sensação de segurança, muito provavelmente ligado à um coeficiente emocional muito fragilizado. Comparo ele à chupeta de uma criança de colo que fecha a lacuna de alguma angústia invisível, estou preso à minha fase oral. Outro "à proposito", inclusive fazendo um link: Cleyciane diz que fumar é fazer chupeta para Satanás. Ficar sem fumar pra mim me causa a sensação de que muita vida começa a entrar em meus pulmões e eu no fundo não sei administrar muita vida, "Meu Deus, o que eu faço com tanto oxigênio!? Onde vou gastar essa vida toda!?" Acho que essa sensação de muita vida me incomoda, não sei direito administrar tanta coisa assim, não sei se tenho competência para plenitudes desse tipo. Tinha diminuído para 5 cigarros diários que eu denominei "freio de mão da vida". Foi bom, me ajudou um pouco. Minha zona de conforto me incomoda, mas estar do outro lado, o lado da vida me assusta um pouco, confesso. Fumar me faz divagar sobre uma vida que não é minha a não ser em pensamento, sobre um futuro, um passado, ou um presente paralelo incrível, mas que de fato não é o meu, quando na verdade fumar me transforma numa figura muito triste que vi na minha infância num filme, um macaco velho que fumava cigarros, vício trazido obviamente por um ser humano que pretendeu humanizá-lo da pior forma possível (se é que existe uma forma boa no processo de humanização). O macaco acendia os próprios cigarros, e seus olhos melancólicos acompanhavam a fumaça que se quebrava pelas grades de ferro. A melancolia vinha de 2 prisões. E hoje eu sou esse macaco de olhar melancólico.
Fernando Sabino disse que os primeiros 10 anos de abstinência são os piores, fumei metade da minha vida, se ao menos soubesse quando eu vou morrer poderia calcular quando eu poderia parar. Poderia voltar com 60 anos, já estava nos meus planos começar a usar metanfetamina e LSD com essa idade mesmo. Dizem que o cigarro tira 8 minutos da nossa vida, mas isso é somado aos 5 minutos do tempo que se leva fumando um cigarro? Tira 3? Ou 13 minutos? Tem gente que diz também que fazer cigarros de cenoura ajuda. E o cú com a calça? Que lado que eu acendo a cenoura? Queria que alguém parasse de fumar junto comigo. Ver outro ser humano sofrendo sempre consola a gente.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Jesus era judeu e depois dele veio o cristianismo.
Maomé veio reafirmar a palavra de Cristo e depois dele veio o islamismo.
Buda só meditava e depois dele veio outro Buda.

GNT

Quero um estilo de vida GNT, morar numa chacara, parar de pagar minhas parcelas de esperança na loteria federal, ter uma bicicleta e deixar um rastro de pensamentos pelo mato, fazer barba com navalha, comer frutas e tocar trombone. Ter uma varanda que fosse o trampolim do sol e por onde chegasse em mim com mais frequência os poemas mais inusitados, que falasse da beleza das rosas e da fome do jardineiro. Ouvir samba, Cesaria Evora, Mayra Andrade, música judaica, musica do mundo, junto às minhas filhas e minha esposa, numa conexão entre os nossos silêncios. Plantar um monte de tipo de coisas. Colecionar discos, cartões postais e selos. Ganhar dinheiro com meus quadros, mas não fama. Não queria ninguém na fila da padaria me perguntando se eu sou quem eu sou, quero apenas poder comprar o pão. Nem ser eu queria, meu sonho é estar sem me notar. Passar despercebido por mim e a par de tudo e de todos. Saber de tudo um pouco, de magia negra à croché, do grande mistério das mulheres ao propósito da vida, o complexo mecanismo do ponto G e da bomba H. Ter sempre um livro de Cortazar comigo, e uma leveza como se tivesse tomado um banho frio e agora estivesse sob o sol.
E as vezes queria um terno bonito, um terno que me caisse bem e que combinasse com um mundo sem fome.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Da Gênese ao Genocídio

                                                                                                          "A gente precisa combinar de se ver"                                                                                                                  (ditado popular brasileiro)

                                                                                                           "Onde está o controle remoto?"                                                                                   (Prenúncio de um pesadelo coletivo)


A humanidade é um Deus estilhaçado. 
É um Deus que tropeçou no mundo e que se repartiu em homens atordoados 
e em mulheres que sangram, 
é um Deus ácido que se derramou em longos viadutos 
e criou crostas e crostas de cicatrizes de asfalto sobre a terra, 
que escorreu como metal derretido que vaza incandescente pelas estradas, 
em carros com adesivos "Foi Deus que me deu", 
que se estendeu sobre a superfície fina de um planeta com anemia.

A humanidade é um Deus que se  descama a todo momento 
e mesmo que a vida siga vencendo, os mortos estão em maioria.

Como me entristece e constrange esse interminável e vergonhoso momento 
em que este garçom enche meu copo, 
esse silêncio infinito. 
Esse copo nunca cheio. 
Esse "obrigado" tímido e pouco sincero. 
A forma pouco natural que as pessoas disfarçam quando alguém coloca a senha do cartão. 
"Débito ou credito"? "Nota fiscal Paulista?"
Que sentido terá o dinheiro quando César estiver com todas as moedas?
Quantos anos ainda vai durar o monopólio das cores dos Bancos e dos Postos de Gasolina nessa cidade cinza? 

Cultivo um carinho maior àqueles que tem problemas com álcool, 
àqueles que tem crises de consciência, tendências suicidas, 
àqueles que usam advertências dos maços de cigarros como cartas de tarô, 
do que aqueles que jogam futebol às quarta feiras e que vão à igreja aos Domingos, 
pedir perdão e ajuda à um Deus nórdico-árabe embalsamado e seco, 
como um camundongo encontrado à beira de um canteiro de obras 
e que não foi apto a salvar nem a si mesmo. 
Caetano lavou minha alma mais do que Jesus foi capaz, 
e por muito tempo fui o Cristo de mim mesmo, e nunca me perdoei.

O diabo é humilde. 
Pegou pouca coisa. 
Tomou um planeta pequeno com gente miúda do vasto universo. 
E deixou pra trás, cidade atrás de cidade, 
o rangido do monstro que temos que convencer às nossas crianças de que não existe. 

Existe, no entanto, essa estranha sombra,
esse monstro primário dentro de mim,
e que não sei ao certo como ele se alojou lá dentro,
nem de onde veio,
mas que crava as garras na aorta do meu coração
e tenta subir pela minha garganta,
e nos atracamos
rolando ladeira abaixo,
descendo ao meu porão, rolando com ele, até sufocá-lo,
numa incessante batalha
e eu quero arrastá-lo para cova
comigo sem que
antes ele fuja completamente
de dentro do meu peito e saia à cometer atrocidades em meu nome.

Ah, que desânimo me sobe aos braços e me acomete de tristeza as coisas mais despercebidas e pequenas...
Por que meu coração teima em ver aquilo que os olhos não sentem?

Como me mata de desgosto ver "Atenciosamente" sendo abreviado como "Att" nos e-mails.
Ver maçãs com adesivos colados nelas e marca registrada,
E como me ofende os rótulos "100% natural"
"Estamos em reforma para melhor atendê-los", 
"sorria, você está sendo filmado",
ou alguém fazendo o sinal da cruz na frente de uma igreja.
E como que quase me estraçalha a humanidade por completo ouvir de uma cancela eletrônica "boas compras". 
E de um supervisor comercial "Boas vendas!".
Que culpa de não sei de quê ao certo me abate quando vejo o retrato sorridente do funcionário do mês na parede engordurada,
que vergonha estranha a minha por não ser um homem-placa com um colar no pescoço com os dizeres " apartamentos de 80 metros quadrados com uma suite na Vila Mariana à 200 metros",
ver homens fantasiados de mascotes sob o sol tropical nos evita ao menos desse mal estar de olhares se cruzando,
e eu atravesso todos com
meu pênis,
minha pele branca,
minha heterossexualidade,
meu orgulho das coisas que me envergonham,
e a vergonha das coisas de que me orgulho.
E minha consciência pesada abaixa minha cabeça.
Que vergonha alheia a minha própria vergonha distribuída.
E no entanto que mistério ver todos com tanto medo da morte.

Onde andarão os nossos mortos?

Perdoe, Senhor, somos apenas crianças soterradas dentro de adultos.

Mas por outro lado, que alívio poder evitar conversa com gente que diz que "fica louca com oxigênio mesmo" e que ri disso, 
porque simplesmente tenho mais ternura e fascínio por alguém que me escrevesse um bilhete suicida dizendo "me matei porque estava muito quente" 
do que por alguém que me dissesse "a fila anda". Há mais beleza num homem que se degrada do que no esplendor de qualquer religião. 

Queria a beleza de um homem cego dizendo que para ele todos os homens são negros.
Ou a beleza das mulheres de tetas grandes (italianas antigas, quem sabe) que guardam dinheiro dentro do sutiã preto e que carregam baldes na cabeça, e que tem a vida dura, e cuja vida dura.
Ou até a beleza da tristeza que se sente quando se ouve dizer que uma mulher tem tetas grandes.
Ou das cidades pequenas onde se ofende pouco a terra e se onde se sente menos a culpa de viver.
Onde de tão singela a vida, Deus nos perdoa. 
Ou nos esquece.

Que mundo subcutâneo o meu...
A sensação ter o controle externo do meu corpo, governá-lo por fora, como se me assistisse e não por dentro como se tivesse alma, 
ter olhos para fora da minha cabeça, me dando coragem de ausência e fé de telespectador.
Que alívio essa mortalidade, saber que um dia irei embora com a deliciosa sensação de que estou esquecendo alguma coisa.

Mas existe um alívio ainda maior quando eu saio desse mundo de dentro da minha pele, (onde sou o Deus de tantas criaturas, que agem de forma tão natural e que nem sabem quem eu sou e que sou o Deus delas, e que talvez por isso ajam de forma tão natural), e volto pra esse mundo e percebo que não me tornei apresentador de programa de auditórios, vendedor de Polishop, agente de estrelas, gerente de banco, animador de palco, 
cujo meu total desrespeito a esse mundo paralelo irreal da qual todos fazem parte, eu nunca pertenceria.

Somos sonhos se debatendo como um cardume em convulsão, criando ondas que empurram continentes inalcançáveis.

E como me espanta a ciência moderna por colocar orelha humana nas costas de um rato e de implantarem orelhas de Mickey em Che Guevara. 
Enquanto vejo minha geração sendo formatada pelo alzheimer e pelo autismo.

E a gana, a vontade e a necessidade de vencer na vida, para poder conquistar espremedores de laranja desenhadas por Philipe Stark, cubos de gelo em formato de pinguins, avental com a estampa impressa do abdominal do David Beckham, porcarias plásticas de diferentes formas e inúmeras funções, todas essas maravilhas, todas essas coisinhas, justificam qualquer propina, qualquer desaforo, qualquer sacrifício.

E saber que nossa democracia é defendida firmemente pela 
América do norte como um peito forte e que a América latina tem o formato de um feto retorcido.
Que Batman, Homem-Aranha e Super-homem, estão sufocando os chineses comunistas com monóxido de carbono.
Mas que no meu mundo, um dia, banqueiros, políticos, latifundiários, 
irão pedir humildemente entrada nos sonhos das camareiras, 
dos operários, das domésticas e dos garçons.

Por que apesar do céu ter se desbotado dentro do olho, tem sonhos presos na minha pálpebra, 
e enquanto todos procuram o caminho das pedras, 
eu encontro rostos nas nuvens.

Porque o que me incomoda, não é um Deus cruel que nos testa com duras provas para que possamos exercer as nossas virtudes ou um demônio que nos conforta e satisfaz para que possamos nos perder de nós mesmos.
Nem um Deus cruel que nos ama, nem um diabo prestativo que nos odeia.
O que me incomoda é a criança que já fui um dia
e que me olha triste
do canto da sala.